Pouco passava da uma da tarde quando ela apareceu, suja, desgrenhada apesar do cabelo curto, maltrapilha e com um cheiro bem pouco agradável quando se aproximou. Já a tinha visto pelo café que frequento. Costumava sentar-se numa mesa e falava umas vezes sozinha outras vezes para mim, pois a esplanada à hora que vou tomar café não tem praticamente ninguém. Já tinha notado que não era cem por cento normal apesar de nos seus discursos infindáveis dizer coisas acertadas.
Naquele dia ao aproximar-se, olhou para a cadeira vazia em frente à minha e deixou cair o corpo pesado sem pedir licença. Fiquei de imediato bem chateada porque queria estar sozinha a ler e porque o cheiro que dela emanava era quase insuportável. No entanto nada disse e de óculos escuros e cabeça baixa continuei a minha leitura.
Foi então que começou a falar para não mais se calar até à minha saída do café. Falou e voltou a falar na sua linguagem atabalhoada fazendo-me perguntas pelo meio às quais eu respondia abanando a cabeça sem a levantar e sem sequer olhar para ela. Metade das coisas que disse ,confesso que nem as ouvi, mas eis que sem mais nem porquê me pergunta se sei o preço de um ice tea. Respondo que não entre dentes. Sem hesitar, diz:
- Pois... acho que são setenta cêntimos... - contou as moedas que tinha na mão. - Sabe menina? Recebo trezentos euros de reforma e não tenho água nem luz em casa...
Continuou a falar mas eu deixei de a ouvir e pela primeira vez levantei a cabeça e olhei-a. Senti um aperto no coração sem conseguir sequer imaginar uma casa sem luz nem água pensando de imediato na minha, apetrechada com todo o conforto. Continuou a falar e a olhar em frente, e falou, falou, falou. Baixei de novo os olhos para a revista e compreendi as suas roupas, o seu cheiro, a tristeza que não aparentava.
Eis que sai uma senhora do café, a meu ver penteada e vestida de forma banal, mas que não lhe passou de todo despercebida.
- Bonita, aquela... oh menina, se eu 'tivesse assim vestida e se tivesse assim o cabelo também ficava bonita... de certeza.
Com algumas dúvidas levantei a cabeça para a olhar quando esbarrei nos seus olhos que me fitavam pela primeira vez. Olhos de um azul cristalino, de um azul difícil de descrever, de um azul quase impossível de alcançar. Aqueles olhos ao pé dos meus castanhos mais que banais... nem vale a pena comentar. Observei-lhe um nariz perfeito e acho que naquele momento as dúvidas se dissiparam. Quem sabe...
De repente levanta-se. Diz que vai comprar o ice tea. Volta entretanto, senta-se e comenta que tem de ficar à espera da camioneta que a levará a casa. Uma casa sem água, sem luz e sabe-se lá mais o quê.
Olho para o relógio... está na hora de voltar ao trabalho. Levanto-me, olho-a mais uma vez, mergulho no mar dos seus olhos e balbucio um boa-tarde pouco perceptível.
Dirijo-me ao carro, entro e fico a pensar. Na lição de vida que tinha acabado de receber, no post que iria fazer sobre ela, no ice tea que lhe devia ter pago.
Muito tocante o teu post amiga. E que bem escrito.
Gostei muito.
Beijinhos
De
ónix a 11 de Outubro de 2010 às 22:53
Obrigada, amigo... tinha de ser escrito. Foi o que pensei mal abandonei o café. Lições de vida que ficam para sempre.
Beijinhos
Menina Ónix...
A vida às vezes lembra-nos a gratidão que lhe devemos, detestei esta frase é tão "Maria", (sacana da vida) mais uma para nos cobrar, até por isso pagamos, e eu a achar que nos podiamos permitir ser miseráveis a meio dos nossos luxos e dos nossos confortos, a Vinagrinha está azeda hoje, tem dias que o egoísmo me sabe bem, só para te dizer hoje eu não teria olhado, nem visto... será que é assim tão mau?
Sintra abraça o Ribatejo com saudade
(sou menos azeda aí)
Quimera
De
ónix a 11 de Outubro de 2010 às 22:57
Então menina Quimera... azeda, tu? Realmente todos temos dias assim... esse azedume vai passar bem depressa, não?
Mas olha que concordo com a frase "sacana da vida". Às vezes apetece dizer.
Que estejas melhor amanhã... olha, pensa no nosso Ribatejo. Acalma.
Beijinhos para Sintra.
Ela?
Ela, são muitas e cada dia mais.
E nós?
Nós, somos cada dia menos, cada dia mais iguais.
Hoje ela, amanhã nós, mal cheirosos e imprestáveis contando miseráveis cêntimos e olhados de lado como animais.
O teu post faz pensar na real dificuldade. Na insegurança destes dias que se atravessam no nosso caminho e nos fazem tropeçar.
Os outros, os outros... temo que sejamos cada vez muitos, cada vez muitos, muitos mais.
Um abraço
De
ónix a 11 de Outubro de 2010 às 23:12
Tens razão, flor. São cada vez mais "elas" que existem por esse mundo fora e pelo nosso País pequenino. Este texto não é ficção. Antes fosse.
Abraço
Olá amiga
Também eu senti o coração estremecer, como se fosse eu que estivesse a passar por essa situação.
Há situações que nos deixam a pensar...e é uma lição para mim também.
Beijinhos cintilantes
De
ónix a 11 de Outubro de 2010 às 23:14
Olá, Gotinha
Bem verdade o que dizes... fiquei assim sem palavras. É uma lição de vida para todos nós. Que estejas bem, amiga.
Beijinhos
De José A a 11 de Outubro de 2010 às 23:36
O meu comentário é... não ter comentários.
Ou melhor, está tudo comentado no comentário da Flor.
Este post (escrito brilhantemente ), deu-me vontade de escrever um post com uma imagem triste e degradante que assisti á uns meses atrás.
Enfim, é esta a verdadeira crise... a crise de valores humanos.
Beijinho e dorme bem.
De
ónix a 11 de Outubro de 2010 às 23:49
Olá, amigo José
Que bom ter-te por aqui. Se ficaste com vontade de escrever esse post, fá-lo. Devemos fazer tudo aquilo que nos dá vontade. É assim a vida... com mais tristezas que alegrias. E ainda nos queixamos nós, às vezes sem razão.
Beijinhos para ti. Dorme bem...também.
Uma não ficção que só merece por "comentário" uma pergunta: tens na manga mais short stories como esta?
Bjões e força! * * *
De
ónix a 12 de Outubro de 2010 às 17:54
São situações que se nos deparam no dia a dia e no caso desta, senti que a devia escrever. Amanhã ou depois, quem sabe, pode surgir outra que me chame a atenção.
Abraço
Se assim for, atira-te ao teclado!!!
Bjões! * * *
De
ónix a 13 de Outubro de 2010 às 21:44
Obrigada por continuares a acompanhar o meu sentir... às vezes falta tempo até de lutar contra o tempo. Mas sempre que a situação merecer a minha atenção, lanço-me sem dúvida.
Beijinhos
De
Ametista a 22 de Outubro de 2010 às 01:14
Minha querida ónix,
Aqui está uma verdadeira lição de vida escrita de uma forma tão real e tão sentida...
Caiu-me uma lágrima e fiquei a pensar... mas que raio de mundo em que vivemos, uns com tanto outros com tão pouco, outros na miséria...
E por detrás de rostos sujos e maltratados, tanta beleza pode estar escondida e passa-nos ao lado...
E, sim, devias ter-lhe pago o ice tea... pra próxima, quem sabe...?
Adorei esta história verídica e que, por sinal, já me tinhas contado e @doro.te a ti, neste caso, por a teres mostrado ao mundo e descrito daquela forma que só tu sabes fazer...
Beijinhos mil
De
ónix a 23 de Outubro de 2010 às 19:59
Fica para a próxima, sim. Fico contente por teres gostado, tu, que escreves da forma maravilhosa que conhecemos.
Abracinho, mana
Quero mais posts, quero mais posts!!!
Bjões!
a) flordocardo
De
ónix a 23 de Outubro de 2010 às 20:01
E a inspiração onde é que está? Se calhar foi nas asas de alguma andorinha para sítios mais quentes. No Outono fico assim. Faço birra!! Quero calor e sol!!!
Bjinhos
De
onda_azul a 5 de Dezembro de 2010 às 15:39
Amiga, gostei muito do que escreveste, realmente nesta vida, às vezes, não sabemos dar valor ao que temos, talvez porque são coisas que pensamos ser já naturais e nossas. Mas na verdade há pessoas que não teem nada e um simples ice tea é uma conquista, enquanto para nós é uma coisa banal. Acho que já senti o que sentiste, mas não tens de te sentir mal, porque só o facto de ouvires essa pessoa, já lhe fez bem e tenho a certeza que essa pessoa se sentiu bem por a ouvires, muito mais do que se lhe tivesses ofericido a bebida. Resta a cada um de nós reflectir e ver que realmente somos uns sortudos por ter a vida que temos e quando nos queixamos é concerteza de ânimo leve...
Bjinho
De
ónix a 5 de Dezembro de 2010 às 18:33
Muito bem dito... somos mesmo sortudos e por vezes não damos valor ao que temos. Bigada.
bjinhos
De artesaoocioso a 26 de Fevereiro de 2011 às 19:01
Margarida,
Existem demasiados olhos azuis encobertos por cabelos desgrenhados.
Saber transmitir essas vidas já não é para todos. [
Error: Irreparable invalid markup ('<br [...] <a>') in entry. Owner must fix manually. Raw contents below.]
Margarida, <BR>Existem demasiados olhos azuis encobertos por cabelos desgrenhados. <BR>Saber transmitir essas vidas já não é para todos. <BR class=incorrect name="incorrect" <a>Bjs</A>
De
ónix a 26 de Fevereiro de 2011 às 22:14
Olá João
Tinha de escrever este post... e por falar nisso há muito tempo que ela não aparece pelo café.
Beijinhos
Comentar post